sábado, 1 de novembro de 2008

OS SAPATOS DE ARISTEU, de Luiz René Guerra (texto 1)

Sexualidade é tema recorrente em muitos debates, assim como a morte. Contudo, raramente morte e sexualidade andaram juntos na mesma conversa, ou ao menos no mesmo corpo. Os Sapatos de Aristeu traz isso como pano de fundo da história, mas não apenas: a cumplicidade, o perdão, e o desejo; o tudo de todos, de todas as relações.

Logo no começo, um ambiente festivo e glamuroso – ou melhor, um festivo mórbido, assim como uma festa que acaba, um glamour desencantado. Assim como a vida que se esvaiu de Aristeu. Somos então apresentados à rejeição, quando se torna claro que os amigos da pessoa falecida trazem um desgosto muito grande à mãe de Aristeu, e mais que isso, o próprio corpo “montado” de Aristeu como a mulher que tentou ser em vida.

A sensação é de um desconforto latente, de uma “serenidade inquieta”, de um pesar constrangido, e fica clara ao mostrar a mãe limpando e arrumando o corpo nu e sem vida de Aristeu. Em um dos raros closes no rosto da pessoa falecida, vemos a mãe retirando cílios postiços, revelando-nos assim uma ponte com o mundo glamuroso apresentado no começo, com o mundo da travesti Aristeu. O preto-e-branco não nos deixa esquecer a áurea carregada de um espetáculo encerrado. A escolha de fazer com que tons fortes de cinza predominem na casa – o lugar privado – e que os tons mais claros predominem na rua – o público, e onde se encontravam os amigos travestis de Aristeu - também acentua a melancolia dissolvida no ar, assim como a escolha por um diálogo escasso, um silêncio diluído apenas pelo canto da travesti. É então que a mãe, ao revelar uma informação à irmã de Aristeu, faz com que esta permita uma aproximação das amigas de Aristeu ao corpo de seu irmão, representado por Aristeu forçadamente “tornado homem” novamente, e que agora é calçado com sapatos femininos. Essa aproximação por meio de um sapato seria um ato simbólico, como diria Pierre Bourdieu, mas não um ato para preservar costumes e hábito culturais, justamente o contrário: quebrar dogmas e conceitos herdados.

O diretor Luiz René Guerra faz escolhas subjetivas e, poderíamos dizer, discretas, mas não menos eficazes. Com um elogio à não-discriminação, Guerra traz a tona discursos válidos e legítimos. E com recursos, no mínimo, coesos, faz do discurso proposto um discurso vitorioso.

Nina Monteiro

Um comentário:

Unknown disse...

Nina,
Estou muito emocionado com a sua crítica. Obrigado por perceber no filme sultilezas e complementos poéticos, digo poéticos por que eles só se complementam com o seu olhar. Beijo,
René Guerra