sábado, 1 de novembro de 2008

OS SAPATOS DE ARISTEU, de Luiz René Guerra (texto 3)

Um bolero interrompido. A inércia de objetos que outrora brilharam em delírios noturnos. Um camarim imerso em silêncio e solidão. Essa atmosfera marca o desfecho de uma fantasia.

Sobre um palco iluminado está o personagem centro, Aristeu, uma travesti morta aos cuidados de suas companheiras. Com o pesar a transbordar dos olhos, estes indivíduos honram o outro com uma sutileza de detalhes que complementam a mulher que ali começara a surgir. Por fim, resta apenas calça-lo os saltos-altos, elementos chave para a transformação completa.

A partir daí, inicia-se uma odisséia que envolve a todos numa busca maior que a da própria aceitação sexual, porém do firmamento da identidade feminina da falecida.

Além de nos lançar ante um preconceito familiar, o curta nos permite uma reflexão acerca de Aristeu no que tange aos seus próprios conflitos, mesmo depois de morto. Um percurso semelhante pode analisado no longa espanhol 20 Centímetros, de Ramón Salazar. Nele acompanhamos a trajetória de Marieta, também travesti, porém viva. Entretanto, o conflito existe e se apresenta cruelmente aos olhos do espectador. Além da questão sexual, há ainda o começo de uma mutação física. A questão é: qual o limite de aceitação das pessoas em relação às mudanças? Vem à tona também a vivência dessa dualidade, de como pode se tornar difícil para o próprio travesti separar suas duas realidades por influência de um detalhe.

Aristeu, obviamente, não se expressa de forma direta. A sensação do “incompleto” e “incompreendido” em sua própria verdade, começa a se dar através de Raul, amigo de Aristeu, frente às ordens de Clarisse. A irmã da falecida nega sua identidade, apática à presença dos saltos-altos sob a guarda de Raul, além de vetar a presença de outras travestis no velório e conduzir um jogo de ela/ele ao longo do diálogo.

Com o corpo de Aristeu já instalado em casa, somos envolvidos em um tipo de peregrinação, onde seus pés descalços soam como um manifesto em prol da mulher interior.

A mãe da travesti permanece sólida junto ao corpo nu do filho. A presença do pênis e de seios fartos no cadáver ilustra o caminho tortuoso trilhado por esta mãe. Este duplo sentimento por um Aristeu masculino e outro feminino é exposto em pontos diversos. A questão da tesoura, por exemplo, usada pela mãe para cortar os cabelos da defunta e que pareceu à Clarisse, por um instante, uma alternativa de completar a mutação física do irmão. A reflexão da mãe se estende enquanto esta lava o corpo do filho, removendo qualquer vestígio de maquiagem. A imagem dos cílios falsos boiando na bacia de água parece nos lembrar que por mais que a mulher de Aristeu tentasse ser destruída, aqueles artifícios estéticos eram apenas a superfície. Mas seu “eu” feminino ainda existia e muitos partilhavam dele, como ilustra o recorte entre a reversão de Aristeu e a marcha de travestis.

No percurso, a mãe parece posta em uma espécie de transe. Fazendo indagações? Pesando seus atos? Revirando lembranças? Sempre acompanhada por um espelho, esta mulher parece medir a outra face de sua realidade presente. Sua redenção está quase entregue.

Em um ato final emocionado, as opiniões se convergem a um ponto em comum. A mãe, Clarisse e travestis acolhem um propósito único: calçar os saltos em Aristeu. A transformação se completara. Todos podiam estar em paz.

Diante desta situação, nos lembraria a travesti Agrado, do longa Tudo Sobre Minha Mãe de Pedro Almodóvar: “Sai muito caro ser autêntica. E, nestas coisas, não se deve ser avarenta. Porque nós ficamos mais autênticas quanto mais nós nos parecemos com o que sonhamos que somos”.

Gabriel Fortes

OS SAPATOS DE ARISTEU, de Luiz René Guerra (texto 2)

Os Sapatos de Aristeu reverencia o cinema enquanto imagem-discurso. Os poucos diálogos são menos importantes que a intensidade dos planos de um preto-e-branco que quer ser poético. A narrativa se constrói, sim, mas de forma fragmentada em takes quase geométricos com evidente analogia ao cinema impressionista - como o de Carl Th. Dreyer em A Paixão de Joana D’Arc.

Silêncio. O valor do não-dito. Mas, de repente, Gracias a La Vida - música eternizada por Mercedes Sosa – na voz da personagem de Phedra D. Cordoba vem como o epitáfio de Aristeu: o travesti que “precisou separar-se da família para ser quem era” (palavras da própria mãe), e que ao juntar-se novamente – morto – passa por um processo de retorno ao gênero masculino pelas mãos da matriarca, que não suportaria enterrá-lo de outra forma que não como homem.

O curta trata da transfiguração da vida em morte, morte essa que, para a personagem-título, seria apresentar-se com terno, calça social, nenhuma maquiagem, cabelos curtos, e... sapatos masculinos. O sapato feminino, que uma de suas amigas travestis lhe calça ao final, é a redenção, uma metáfora da vida que já não lhe é presente.

Julia Portella

OS SAPATOS DE ARISTEU, de Luiz René Guerra (texto 1)

Sexualidade é tema recorrente em muitos debates, assim como a morte. Contudo, raramente morte e sexualidade andaram juntos na mesma conversa, ou ao menos no mesmo corpo. Os Sapatos de Aristeu traz isso como pano de fundo da história, mas não apenas: a cumplicidade, o perdão, e o desejo; o tudo de todos, de todas as relações.

Logo no começo, um ambiente festivo e glamuroso – ou melhor, um festivo mórbido, assim como uma festa que acaba, um glamour desencantado. Assim como a vida que se esvaiu de Aristeu. Somos então apresentados à rejeição, quando se torna claro que os amigos da pessoa falecida trazem um desgosto muito grande à mãe de Aristeu, e mais que isso, o próprio corpo “montado” de Aristeu como a mulher que tentou ser em vida.

A sensação é de um desconforto latente, de uma “serenidade inquieta”, de um pesar constrangido, e fica clara ao mostrar a mãe limpando e arrumando o corpo nu e sem vida de Aristeu. Em um dos raros closes no rosto da pessoa falecida, vemos a mãe retirando cílios postiços, revelando-nos assim uma ponte com o mundo glamuroso apresentado no começo, com o mundo da travesti Aristeu. O preto-e-branco não nos deixa esquecer a áurea carregada de um espetáculo encerrado. A escolha de fazer com que tons fortes de cinza predominem na casa – o lugar privado – e que os tons mais claros predominem na rua – o público, e onde se encontravam os amigos travestis de Aristeu - também acentua a melancolia dissolvida no ar, assim como a escolha por um diálogo escasso, um silêncio diluído apenas pelo canto da travesti. É então que a mãe, ao revelar uma informação à irmã de Aristeu, faz com que esta permita uma aproximação das amigas de Aristeu ao corpo de seu irmão, representado por Aristeu forçadamente “tornado homem” novamente, e que agora é calçado com sapatos femininos. Essa aproximação por meio de um sapato seria um ato simbólico, como diria Pierre Bourdieu, mas não um ato para preservar costumes e hábito culturais, justamente o contrário: quebrar dogmas e conceitos herdados.

O diretor Luiz René Guerra faz escolhas subjetivas e, poderíamos dizer, discretas, mas não menos eficazes. Com um elogio à não-discriminação, Guerra traz a tona discursos válidos e legítimos. E com recursos, no mínimo, coesos, faz do discurso proposto um discurso vitorioso.

Nina Monteiro

CODA, de Marcos Camargo

“Procurando bem todo mundo tem pereba [...] Só a bailarina que não tem”. Em 1982 Chico Buarque e Edu Lobo descobriram que as bailarinas são os únicos seres perfeitos no mundo. Mas Marcos Camargo, em seu filme de estréia Coda, parece discordar dessa concepção. As bailarinas angustiadas do curta-metragem são símbolos ideais de um sofrimento silencioso, de um caos interno.

Iniciado pela frase de Nietzsche, que diz ser preciso ter o caos dentro de si para dar à luz uma estrela bailarina, Coda já indica a direção de nosso olhar. A belíssima fotografia da cena inicial, em que uma bailarina anda por uma avenida vazia durante a noite, serve-nos como direcionamento, parecendo dizer que realmente o externo às personagens não é o importante para Marcos. E esse externo é perfeitamente agradável, florido, desenhado e calmo.

Usando as técnicas de pixilation e light-paiting, o diretor que estréia escancara o dom que tem: a fotografia. Fotógrafo-still de filmes como O Cheiro do Ralo e A Via Láctea, Marcos aposta nesta linha, envolvendo-a a animação. E a escolha por produzir em stop-motion parece ser a mais correta: o andar das bailarinas transmite a leveza e a pureza com que vivem e são vistas.

Com uma equipe muito harmônica, o curta têm êxito no figurino, na maquiagem e na iluminação. São três bailarinas tristes, uma de preto, outra de vermelho e outra de rosa. As três choram maquiagem. As três enlouqueceram. Vivem o caos. Cada uma em uma força natural: água, fogo e ar.

À primeira vista o filme pode parecer extremamente complexo, mas na verdade, é de uma simplicidade e sensibilidade maravilhosas. O diretor consegue de forma exitosa levar ao espectador a angústia das bailarinas que encontrarão no suicídio a única forma de cessar o sofrimento.

Os desenhos feitos com uma lanterna enfeitam as figuras angelicais. Não há figura mais pura que a bailarina e, nesse sentido, Marcos Camargo parece concordar com Chico e Edu: as bailarinas são perfeitas. Mas Coda, em 2008, enxerga além, e vê que para tanto equilíbrio externo há de ter um desequilíbrio interno.

"Coda" significa o término de uma música. E esse é só mais um dos tantos símbolos que o diretor usou para compor essa coda. O curta é gigante em seus 9 minutos.

Nos últimos momentos, Marcos completa a frase do filósofo alemão e diz que é preciso ter o caos dentro de si para dar à luz uma estrela bailarina, à água um peixe bailarina e ao fogo uma chama bailarina. Enfim, de acordo com Coda, é preciso ter o caos para experimentar o “equilíbrio” de uma bailarina.

Mauro Morais

O POVO ATRÁS DO MURO, de Marconi Loures de Oliveira

É inevitável a sensação de simpatia que este filme causa nos espectadores. Já no início da animação escutamos adjetivos como “fofo”, “bonitinho” ou coisa do gênero. No entanto, ao analisar o filme sob um prisma social passamos a ver aquelas “figurinhas” como nossa personificação.

Inicialmente a trama aborda a dificuldade humana de lidar com a descoberta, e fica claro que o novo incomoda. A partir daí ainda entendemos que o que é diferente é tido como marginal e desperta medo, preconceito e/ou insegurança. Isso é abordado pelo curta de uma forma extremamente sensata, mostrando que “o povo do outro lado” é considerado uma ameaça por apresentar hábitos tão distintos como a dança e cores diferente dos outros, que são todos uniformes entre si.

A primeira resposta a este contraste é o isolamento, o que possibilita ainda uma interpretação de que o povo uniforme se considere superior àquele que ficaria do lado de fora do muro. Em um segundo momento eles ainda lançam a ofensiva para se firmarem. É apenas com a queda do muro que surge a possibilidade de diálogo entre estes povos que falavam a mesma “língua”. E o acordo entre eles confere ainda mais humanização aos personagens, diferenciando-os de outras espécies e os aproximando muito da nossa.

O desfecho da trama se dá com os personagens de todas as “cores” dançando em diferentes estilos, o que propõe a idéia de que é mais que possível conviver bem com as diferenças, e que o choque do novo pode ser quebrado sempre que exista tal disposição.

Bruno Costa da Silva Coelho

OXICIANURETO DE MERCÚRIO, de André Carrera

Ao contrário do filme de Lufe Bollini (Os Boçais), Oxicianureto de Mercúrio convida o público a participar da trama e se envolver com os personagens desde os primeiros minutos. A fotografia, os personagens, a história, o narrador, tudo nos atrai!

O narrador, aliás, tem função exemplar dentro da trama, sempre trazendo elementos externos (não tão externos assim) para ajudar a contar a história. Me fez lembrar o tom um tanto capcioso de coisas como em Amèlie Poulain (Jean-Pierre Jeunet, 2001) ou Dogville (Lars Von Trier, 2003). Em ambos os casos, o narrador tinha papel quase de coadjuvante, a consciência da história, onipresente, aquele que tudo sabe e tudo vê. Este aspecto do roteiro é outro ponto que se soma à tentativa de envolver o público – é quase como se uma Tia Gladys (retratada no documentário homônimo de Marina Pessanha) contasse uma daquelas histórias de bichinhos.

Tenho a tendência a achar que absolutamente nada em um filme foi por acaso. A começar pelo nome do personagem: Amâncio. Tenho a sensação imediata de um homem pacífico, talvez um personagem de Clarice Lispector. Daqueles que a gente fica observando numa tarde chuvosa, com um jornal na cabeça, um terno marrom e sapatos muito bem lustrados.

Por fim – mas não que esteja se esgotando o que tenho a dizer sobre o filme – outra questão interessante é o casamento com filmes antigos. É extremamente cativante ver o médico contar as histórias, deu vontade de ter um cara assim no Programa de Saúde da Família. Para entreter as crianças! Uma escolha muito feliz do diretor, num filme repleto delas.

Lívia Maia

sexta-feira, 31 de outubro de 2008

NAS BRUMAS DO TEMPO, de Adriana Barata

Percebo com estranhamento o conceito que construímos em torno da palavra “solidão”. E o curta de Adriana Barata levou-me a refletir sobre esse estranhamento. Encontrei-me com um universo cheio. Encontrei-me com mensagens que se colocavam por si sós. Uma fazenda adormecida nos braços do tempo; personagens pertencentes a um mundo a muitos de nós inacessível, onde os animais são parte da trama, do tecer da vida.

O documentário acompanha o fluir do dia e muitas de suas tomadas fruem as passagens vagarosas e quentes do ambiente vivo. O silêncio compõe sinestesicamente a textura palha da fazenda e de seus viventes. Nos sorrisos, nos olhos distraídos, nos movimentos soltos, a sensação não é de solidão, apesar da tentativa de se explorar essa idéia, de certa forma já estereotipada na imagem do campo.

Na verdade, muito além da solidão, outras questões pungem no retrato de existências tão intensas. Uma intensidade incompreendida no nosso repertório urbano e imagético, abarrotado de informações e ritmos que nos encaminham para uma insensibilidade tácita. Uma narração ao fundo do documentário retrata bem esse descompasso entre a dimensão do oceano simbólico (a fazenda do Cedro) e o direcionamento que o olhar da diretora tomou em certos momentos.

Fui retirada do leito do documentário e me vi mais sedenta, tomada pelo desejo de mergulhar verdadeiramente na beleza dos temas que não foram decifrados. No entanto, percebo neste momento que talvez eles não precisassem mesmo ser decifrados. E aqui cruzo com a beleza do documentário. É preciso que se diga que as coisas vivem e se comunicam todo o tempo, não conosco, mas para si, para o universo. Quando, mesmo que momentos imateriais, nos aproximamos dessas mensagens, chegamos à compreensão da ignorância com a qual travamos desde sempre intermináveis batalhas.

Raquel Lara Rezende

NECESSIDADE, de Igor Souto

Necessidade se inicia com um personagem abrindo uma porta e ingressando em um ambiente pouco iluminado. Tal fato introduz o espectador a um universo amplo de interpretação e alternativas a fim de compreender a trama que se estabelece. Estes horizontes ainda se ampliam quando flagramos o personagem em um conflito intenso e vigoroso, como se estivesse perdido em um labirinto. A pouca iluminação e a situação do eu interior do personagem estabelecem um dialogo entre si e transmitem com clareza a mensagem conflituosa.

A aproximação do plano de gravação, a respiração ofegante, os vários filtros de cigarros no cinzeiro e os inúmeros rascunhos amassados e jogados fora contagiam o espectador, que passa a vivenciar aquela situação. No entanto, ainda não se sabe ao certo o motivo para tal estado emocional.

De repente uma “solução” parece ter sido encontrada: um misterioso “um metro e setenta e cinco” escrito numa folha de papel. E com o foco no anúncio de jornal, o espectador começa a ser direcionado a identificar o motivo de tal conflito. Ao destacar a unha vermelha e a transformação do personagem em Paloma, passamos a visualizar a trama sobre um prisma mais específico. Nele o personagem luta o tempo todo contra valores sócio-culturais e seus próprios preconceitos a fim de se libertar para viver suas vontades.

O quebrar do copo simboliza a ruptura do personagem com tais valores, assumindo uma identidade que lhe confere certo alívio e liberdade para viver aquilo que realmente lhe causa prazer. Ao optar por um ator do sexo masculino podemos ainda entender que, para o diretor, estes apresentam maior dificuldade em romper com os parâmetros estipulados pela sociedade.

Ainda sob uma visão geral da sociedade, entendemos que nós somos submetidos a uma uniformização inconsciente, na qual o diferente é dito como errado. Assim, recorremos à criação de personagens dentro de nós mesmos que possibilitem o gozo de nossas vontades. E é sobre isso que Necessidade quer nos alertar.

Bruno Costa da Silva Coelho

PAPEL DE JÚLIA, de Helton Okada

Os lábios plasmados em rubi tragavam mais que a fumaça do cigarro. Pareciam tragar os últimos momentos de realidade, antes do chamado de André. Papel de Júlia começa desfilando possibilidades. A cogitação de que o casal já se conhecia surge em determinados momentos, no entanto, a forma como os papéis são desempenhados demonstra que a trama envolve mais elementos simbólicos do que podemos visualizar na tela. Letícia torna-se Júlia. E a encarnação desse papel traz consigo certo pesar, certo desejo de contestação. Letícia precisa se anular, se despir de si, retirar seu batom rubi, para se encaixar na fantasia de André e seu vestido perolado.

O portal para uma fenda no tempo é aberto quando a aliança enlaça o dedo de Letícia/Júlia. Talvez não venha a ser uma fenda no tempo, mas apenas uma fantasia nunca concretizada com uma Júlia morta, desaparecida, presente, ou mesmo de bruma.

Letícia se entrega finalmente a este universo que parece não ser de todo desconhecido por ela. Durante a volta, no carro, Letícia já indica seu desconforto, como se o retorno para a realidade fosse penoso. A chegada à rua fecha o ciclo. André agradece à Letícia pelo serviço prestado, como se tratasse de uma necessidade corriqueira, trivial. Sua fala (“Qual seu nome mesmo?”) traz para a cena um clima até então inexistente de leveza e naturalidade, o que não infere, necessariamente, sinceridade.

Letícia se senta no chão e acende o cigarro. Novamente junto com o trago, a personagem suga sua realidade e retoma seu papel de Letícia. Seu riso nervoso deixa escapar uma dualidade entre a atração pela desfiguração de si e de seu mundo e a negação da sua identidade. O curta deixa no ar uma sensação de leveza, porém não “des-tensa”.

Papel de Júlia traz à tona questões importantes, dentro das perspectivas pós-modernas de fluidez e não-pertencimento, que tangem a nossa existência e a forma com que lidamos com nossos desejos e as possibilidades de transmutação. Negociações difíceis que exigem momentos de reflexão, sugeridos nas sutilezas do curta de Helton Okada.

Raquel Lara Rezende

SISTEMA INTERNO, de Carolina Durão

Quando Sistema Interno começa, nosso olhar se depara com o rosto de alguém que acaba de acordar, uma mulher em sua intimidade. Nesse instante, tem inicio um exercício de metalinguagem em que nós espectadores também fazemos parte da idéia. Quando aquela mulher comum sai de casa para mais um dia de trabalho, vemos a ação através de câmeras de segurança, a partir daí ficamos também na posição de voyeur, pois além de sempre sermos observados na rua, nós também, sentados na cadeira do cinema, estamos a olhar o que se passa. No cinema, através de nossa sede por ver o outro, nos permitimos envolver com histórias e situações que são feitas para saciar nossa ânsia. Neste espelho em que nos deparamos, olhamos o ser humano de frente, podendo ser em close ou primeiro plano.

Um interessante exercício de linguagem, Sistema Interno nos faz pensar em temas recorrentes em nossa contemporaneidade, a angústia de estarmos sendo olhados a todo o momento, o mundo audiovisual que tomou conta de nossas vidas, uma época onde as pessoas se angustiam ao serem vigiadas, mais que também possuem desejo e fascinação quando se vêem na tela. A atriz nos olha com um riso de sarcasmo no rosto ao final do filme: é como se ela nos dissesse que sabia que estamos a olhá-la.

Daiverson Machado

A TAL GUERREIRA, de Marcelo Caetano (texto 2)

Clara Nunes deixou o palco da vida, e dois anos depois fiz minha estréia nesse mesmo palco. Porém somente 23 anos depois me vejo encantada pelo universo de uma das cantoras mais populares do samba e da MPB. Clara, a cantora dos orixás, é apresentada no vídeo-documentário de Marcelo Caetano de formas inusitadas.

O diretor cria um paralelo entre o profano e o sagrado, representados respectivamente por um centro de umbanda que acredita na santidade de Clara Nunes e um transformista que se apresenta em boates, travestido como a cantora.

O documentário apresenta sobreposições das imagens e uma edição cuidadosa. Os dois mundos se misturam e fazem com que o espectador tenha dificuldade em separar as duas realidades. Televisões no centro de umbanda, mostrando vídeos da cantora, e go-go boys travestidos de orixás ilustram a mistura desses dois mundos.

No decorrer do filme, o que fica claro é o fascínio que a cantora ainda causa em todos. O diretor mostra que Clara ainda encanta.

Natália Mancio

A TAL GUERREIRA, de Marcelo Caetano (texto 1)

Hoje é aceitável que a concepção de divindade esteja embutida em várias formas. O caráter do divino pode assumir múltiplas maneiras de acordo com a crença de cada um, como por exemplo, as igrejas lotadas de fiéis ou a veneração de fãs com seu ídolo da música. O filme de Marcelo Caetano nos transporta a mais uma realidade desse caráter contemplativo: a cantora Clara Nunes como entidade espiritual.

Primeiramente, somos conduzidos a um terreiro de umbanda. Nesse lugar encontramos um acontecimento aparentemente curioso, uma TV ligada emitindo a imagem da cantora e sua composição artística, unindo aquelas pessoas na vida e possivelmente na morte. Logo depois, somos apresentados a um novo fragmento: uma travesti que incorpora grandes divas da MPB, inclusive Clara Nunes.

O culto do grupo de umbanda se contrapõe ao espetáculo da travesti. Enquanto o primeiro revela simplicidade e uma devoção beatificada, o segundo é composto de plumas e paetês. Entretanto, existe um elo único, o que torna o filme “claro” em sua essência espiritual. Dessa maneira, Marcelo Caetano consegue captar sutileza ao transpor nas telas duas manifestações tão distintas e também tão iguais entre si.

Raquel Turetti

LÚMEN, de Willian Salvador

Todo criador é passível de instantes de desespero por uma possível ausência de idéia e genialidade. É sob essa afirmação que Lúmen, curta metragem do estreante Willian Salvador pode ser norteado. O filme, feito em stop-motion, conduz a visualização do processo de criação, através de um personagem que tem o corpo construído de ferramentas e uma cabeça de lâmpada, a melhor forma de simbolizar as idéias. Mas são justamente essas que parecem carecer ou se confundirem na cabeça deste idealizador. Sentado em uma mesa de madeira e debruçado sobre o papel branco, é tomado da expectativa de surgir a qualquer momento uma idéia incandescente. Mas tudo parece falhar, visto as inúmeras folhas de papéis amassados inertes próximas ao lixo que deveria recolhê-las automaticamente – e que, como a cabeça do inventor, não funciona tão bem. De repente, após observar quadros que sugerem as invenções humanas, as artísticas, as religiosas, o inventor, acumulado de inspirações, encontra a solução para sua falta de idéias: troca sua própria cabeça.

A lâmpada nova o faz novamente tentar criar. Assim o filme propõe que as inspirações e a ousadia de pensar idéias novas são o início de todas as invenções da humanidade. As moscas que insistentemente rodeavam a cabeça do inventor são as perturbações cotidianas, o caos exterior que frustra e leva o personagem à atitude fatal e pessimista do artista, a destruição das próprias idéias. Utilizando a tríade comum das narrativas de começo, meio e fim, e sustentado pela leveza com que as emoções humanas são condicionadas pelos filmes feitos em animação, o curta consegue sutilmente mexer com o profundo desespero da fluidez criativa.

Carolina Alzei

PÁGINAS DE MENINA, de Mônica Palazzo

O curta Páginas de Menina se passa na década de 50, precisamente em 1955. O filme retrata a vida de Ingrid (Tieza Tissi) uma jovem do interior de São Paulo, apaixonada pelos livros e pela literatura. Movida pela paixão, Ingrid começa a trabalhar na Livraria Machado de Assis, onde conhece a gerente Silvia (Vera Zimmermann). Silvia é uma mulher de personalidade forte que morou alguns anos em Paris. Ingrid é uma jovem insegura e sonhadora que passou toda sua juventude em Araraquara, interior de São Paulo.

O primeiro encontro das personagens deixa claro que há um sentimento maior entre as duas partes. E a partir desse momento, a trama ganha densidade, retratando a homossexualidade feminina, um tabu para década de 50.

Ingrid vê em Silvia a força feminina que ela um dia sonha em ter. A força e atitude de Silvia norteiam toda relação, que passa de um amor carnal para um amor maternal. Silvia, preocupada com o desfecho de sua relação com uma adolescente, retorna a Paris e acompanha de longe a evolução de Ingrid, que se torna uma escritora.

O filme retrata de maneira singela a relação entre as duas mulheres, romantizando o fato para dar um ar de pureza clássica, sobretudo nas cenas de sexo. As locações ajudam a dar o clima de época, retratando bibliotecas, casas e ruas fiéis à arquitetura da década de 50. O figurino expressa a personalidade de cada personagem, definindo papéis e as atitudes de cada um, transportando o espectador para dentro da história.

Diogo Augusto

OS BOÇAIS, de Lufe Bollini

Preferiria não ter conhecido o diretor nem suas intenções ao gravar. Afinal, o público não tem acesso a isto nas condições normais de temperatura e pressão. Porém tive a oportunidade de ter um questionamento respondido: o que é que Lufe Bollini estava pensando ao fazer o filme. E a resposta foi algo como “eu queria revolucionar”.

Bom, historicamente ficou comprovado que as revoluções não deram muito certo, tampouco atenderam às reivindicações da maioria. Mas não é para atender a maioria que o cinema aqui está. Acredito que o cinema tem a função de provocar sensações e a que senti foi o incômodo, apesar de uma produção enorme e de um trabalho cuidadoso com a fotografia. Me incomodei com a dublagem, com os personagens, com a história. Ou talvez este seja apenas o pensamento de uma menininha que se choca ao não ver um happy-end (não que eu seja esta criatura).

Lívia Maia

PRIMEIROS TEXTOS DA OFICINA DE CRÍTICA DO FESTIVAL PRIMEIRO PLANO 2008

A oficina A Crítica e o Curta-Metragem Brasileiro, oferecida este ano pelo Festival Primeiro Plano 2008, vem sendo realizada desde a última terça-feira, pelas manhãs, no auditório do Museu de Arte Murilo Mendes. Os 30 alunos participantes discutem diariamente os filmes exibidos na mostra competitiva nacional de curtas-metragens da noite anterior e saem das aulas com a tarefa de transformar este papo em texto crítico. A primeira leva dessa produção acaba de ficar pronta, e é ela que publicamos a seguir, com todos os autores devidamente identificados. Cada aluno teve total liberdade de escrita, e a própria dinâmica de uma oficina que agrega pessoas de formações diferentes se manifesta nos textos que apresentamos agora, todos eles bastante distintos entre si, e ao mesmo tempo completamente entregues ao exercício do pensamento crítico sobre o cinema – e, especificamente, sobre o cinema de curta-metragem brasileiro atual, sempre tão pouco analisado pela crítica. O mandamento fundamental das nossas aulas tem sido a aposta no binômio paixão-lucidez (tomado emprestado do grande crítico francês Jean Douchet). E é de amores e idéias que os textos abaixo – e os que ainda serão publicados até o fim do festival – se nutrem.

Que leitores e realizadores acompanhem a jornada destes novos críticos sempre por aqui, no blog do festival.

Rodrigo de Oliveira
(professor da oficina)